Memória Velha Oitavo Capítulo

O tema musical de nosso folhetim é este aqui. Se quiser entrar no clima do capítulo, só ouvir e viajar ao mundo de Caio, Estela e Fábio.

************************

Fábio chorando muito, mãos no rosto. Ele está sozinho no escritório de seu analista, que foi à cozinha. Seu visual meio viking contrasta com a extrema fragilidade do momento. Sua pele é como se fosse seda ferida por espinhos. Chora o ontem, seu sonho e sua desventura. Chora o hoje, chora o amanhã, chora o nada que se instalou em sua cabeça.

Fábio, beba.

O que é isso?

Água com açúcar.

Isso não adianta nada.

Beba.

Um homem da ciência me oferecendo simpatias da cultura popular…

Não é uma simpatia. É açúcar. Libera serotonina.

Boa tentativa, doutor Bolzan.

Bom, hoje pelo visto é sem futebol, não? Temos quase vinte minutos de sessão e tudo o que consegui entender é que você viu o espírito de seu pai ontem…

Sonhei.

Isso.

Mas não era como um sonho comum. Era real.

Sonhos são reais.

Não como senhor tá falando.

São produto do nosso inconsciente.

Eu sei.

Silêncio constrangedor. Fábio vira o copo d’água de uma vez.

Sem futebol hoje? Justo hoje que eu tenho como contar vantagem?

Na Vila Matilde Eduardo brinca com a filha no colo. A entrega para Sara que logo entende, essa é a deixa para que ela se retire. Sandra e Eduardo frente a frente no sofá. Tensos.

Eu acho que a gente precisa resolver todo esse rolo, Eduardo. Eu não fiz nada de errado. Preciso viver minha vida da mesma maneira que qualquer mulher da minha idade vive. Não sou criminosa, não tenho rabo preso com ninguém. Quero ser gente normal, comum. Ter Facebook, ir à praia, namorar. Ter uma família. Não aguento mais essa reclusão.

É por pouco tempo…

Já passou tempo demais. Olha o tamanho da menina.

Você criou essa situação se envolvendo com o Fábio. Eu só tento administrar da melhor maneira possível.

A melhor maneira possível não é me escondendo em Curitiba. E você sabe que eu não me envolvi com o Fábio sabendo quem ele era.

Tá. Você é só uma enfermeira vagabunda que dava pra qualquer paciente daquela clínica.

Eu não sou uma vagabunda! Aconteceu!

Vagabunda e mentirosa! Você tentou enrolar o Fábio! Disse que a menina era dele. Ele acreditou, sabia? Me contou que você disse que me conhecia!

Eu não falei que a gente tinha tido um lance…

Mas disse que me conhecia. Agora ele sabe da minha internação. Você me fragilizou diante deles. Olha só o prejuízo que você me causou mesmo estando longe… Você perto é uma coisa que eu não posso admitir que aconteça.

Vai fazer o quê?

Vou falar com uns amigos meus e dar um jeito de te tirar daqui…

Eu não quero sair. Eu quero ver o Fábio.

Não vai ver Fábio coisa nenhuma…

Ele gosta de mim. Vai assumir minha filha. A gente vai ficar junto e pronto. Ninguém precisa saber que a menina é sua.

Sandra, eu vou te tirar de São Paulo de novo. E se você resolver voltar a coisa vai ficar muito feia…

Me ameaça mais.

Não tô ameaçando.

Ameaça. Ameça que quando você dobrar a esquina eu tô indo bater na porta da tua casa pedindo DNA da menina. Vamos ver o que a bonitinha da tua mulher vai achar. Se você sabe ameaçar eu também sei. Você fica quieto, eu fico queita e a gente convive em família. Não tem motivo de eu viver feito uma refugiada. Chega, eu cansei.

Sandra, Sandra… Você está me colocando contra a parede. Eu me vejo obrigado a reagir.

Até agora você tava comandando o meu destino. Eu deixei. Eu fui. Fui, recuei, me fiz de sonsa. Mas fui recolhendo cada lágrima que eu derramei. Agora eu tenho uma caixa d’água inteira delas pra te afogar. Eu sou uma mulher livre, solta, dona do meu nariz e dos destinos da minha filha…

Você é uma biscate…

Eu sou tão forte quanto você me imagina fraca. Não esperava a invertida, né gatão?

Abre a boca e você morre.

Sandra tira o celular do bolso. Mostra para Eduardo que o botão vermelhor REC está acionado.

Eu morro e esse celular aqui te mata.

Suja. Você é muito suja.

Quero ver se você é macho, agora.

Toca o telefone de Eduardo. Ele atende perturbado.

Alô.

Oi, é o Caio.

O que é?

A Estela tá de alta e…

Tá bom. Diz que eu tô indo buscá-la.

Não, não vem.

Como assim?

Ela quer ir ao banco e a gente vai com ela.

Mas que coisa mais absurda, Caio! Não tira minha mulher desse hospital que a coisa vai feder…

Ela é livre. Tô só avisando. Ela disse pra você estar lá às onze em ponto pra assinar a documentação. Tchau.

Caio! Caio!

Eduardo desliga o telefone irritado, berrando.

Já veio aqui me infernizar. Agora vaza e vai pagear minha cunhadinha. Da minha vida e da minha filha cuido eu.

Eduardo sai sem dizer uma só palavra.

No consultório, Fábio já mais calmo demora a concatenar as ideias.

A vida da gente é uma coisa completamente sem sentido, não é?

Mas tem de haver um sentido?

Seria melhor.

É. De certa forma…

Eu perguntei isso ontem pro meu pai.

E ele?

Ele disse que achava que era fazer o bem.

Não te pareceu uma filosofia adequada?

Me pareceu desamparo.

Desamparo?

É. A gente faz uma ideia absurda dos pais da gente. Ah, doutor… Se o senhor soubesse as coisas que eu imaginava a respeito dos meus pais… Minha mãe era linda. É uma mulher bonita até hoje. Meu pai era poderoso, forte, charmoso. Ele em cima daquela moto, vestido de couro, com aquelas mulheres que não tiravam o olho dele… Era uma espécie de visão ideal do que é o homem, do que se espera de um hoemm. Era forte, viril, atraente, bem sucedido, imperial mesmo. Engraçado, jovem. Eu olhava pro meu pai como um cachorro olha pro dono. Olhava e sabia que por mais que eu o amasse, jamais conseguiria me tornar um membro da mesma espécie.

Fábio, me permite virar a chave do terapeuta por um minuto e fazer uma observação pessoal?

Sim.

Você descreveu seu pai da mesma maneira como eu vejo você.

Não entendi.

Você é forte, viril, imponente, entra aqui com essas botas batendo no meu assoalho e fazendo tudo tremer… Esse cabelo preso pra cima, essas suas roupas. Você é um homem que transpira força. Não vejo motivos pra não se julgar da mesma espécie de seu pai.

Meu pai não se quebrava feito louça como eu me quebro. Me parto em mil pedaços todos os dias. Isso me difere dele.

Será?

Eu sei que sim.

Mas e seus planos de retomar sua família, o casarão, de olhar por seus irmãos? Isso não é coisa de quem seja tão frágil.

Mas são planos, apenas.

Aja! Faça eles saírem do papel. Reforce a louça.

Na casa de Ada uma grande mesa montada espera as visitas de Cida, Estela e Caio.

Senta, gente, senta. Fiz comida leve pra Estela, não tem nada muito condimentado querida. Pode comer sem medo. Tudo bem fresquinho.

Obrigado Ada. A gente levou um susto daqueles com essa minha filha mas agora tudo há de se resolver. Daqui uns dias saem os resultados dos exames.

Claro, claro, claro. Isso é estafa. Coisa boba.

Ada, a gente fez questão de passar aqui pra te agradecer.

O quê?

O oferecimento que você fez ao Fábio. O dinheiro pra recuperarmos o casarão.

Ah, mas é o patrimônio do meu filho! Não fiz nada demais. Só avisar que está a disposição de vocês.

Não é preciso. Passamos no banco agora, eu saquei minha aplicação. O cheque está com o Caio, o Fábio vai juntar com as economias deles dois e vamos pagar a dívida.

O Eduardo assinou?

Assinou. Encontrou com a gente no banco e assinou.

Que maravilha. Fico feliz do casarão ainda ser nosso. Vocês gostam de couve-flor? Fiz uma couve-flor com queijo muito boa, vocês vão gostar…

Toca a campainha e Ada vai abrir. É Fábio, que se junta a eles com muito carinhos, beijos e fome da comidinha caseira feita pela mãe. Sobremesa, café, sossego no sofá. Estela deitada no colo de Fábio, que lhe acaricia os cabelos.

Andei me estranhando com o seu marido.

Como assim?

Eu quase quebrei os dois braços dele no hospital.

Fábio, para de lorota…

Ele me chamou de drogado.

Não acredito…

Verdade. E eu sei que ele é a única pessoa que não tem esse direito, Estelinha.

Ela se levanta rapidamente.

Do que você tá falando?

Eu sei de tudo. Da internação que os pais dele arranjaram. Na mesma clínica que eu. Do motivo pelo qual o pai da gente nunca ter gostado dele.

Como você sabe disso?

Eu fiquei amigo de uma moça… Uma enfermeira de lá. Ela te viu no dia em que você foi me visitar e te reconheceu. Disse que te conhecia. Que você ia todas as semanas visitar seu namorado.

Eu tinha de apoiar, né?

Fez bem. Mas tinha de contar pra gente.

Todo mundo tem seus segredos.

Isso lá é verdade. Quer saber de um meu?

Quero!

Você é titia.

Oi?

Titia. Eu tenho uma filha.

Como assim tem uma filha?

Essa moça, a enfermeira que te reconheceu. A gente se envolveu, ela engravidou e teve uma menina.

Como é que a gente não soube disso?

Eu soube da existência da menina depois. Quis fazer uma família com elas mas ela sumiu. Mudou de endereço, ninguém sabe pra onde. Procurei na internet, redes sociais. Sumiu no ar.

Eu tenho uma sobrinha!

Tem.

Eduardo entra, cara de poucos amigos.

Estela, eu já resolvi meus assuntos no escritório. Vim te buscar pra gente ir embora pra casa.

Amor, escuta essa novidade: O Fábio tem uma filha! Eu sou tia!

Filha?

É. Não é incrível?

FIM DO OITAVO CAPÍTULO

Memória Velha Sétimo Capítulo

Fábio abraçou o pai. Uma emoção que não há palavras no vernáculo para descrever de maneira justa. Horácio parecia alguns anos mais jovem, a pele menos rugosa, os olhos mais brilhantes.

Pai, a gente cremou você…

Vocês cremaram meu corpo.

Pai…

Sou eu, olha pra mim direito, Fábio. Olha nos meus olhos.

O senhor tá lindo, pai.

Eu sou bonito.

É, o senhor é bonito.

Não é?

Pai, o que é isso? Aqui é o quê, o céu? O purgatório? Eu morri?

Cala a boca e aproveita. Custou caríssimo pra mim essa visita.

Visita?

Fábio, menos. Quando for a sua vez você vai entender.

Mas, pai…

Fábio, escuta…

Me explica, isso é um sonho? Isso é aquilo… Como que se fala…

Isso é a vida, meu filho. A vida. Ela é eterna, ela é cíclica, é algo muito diferente daquilo que você pensa…

Mas eu achava que…

Fábio, que coisa ansiosa, menino! Chega! Vem cá.

Horácio puxa o filho pelo braço por uma espécie de corredor macio. Como se as coisas tivessem uma textura mais flexível que as que são experimentadas na Terra. Fábio se arrepia o tempo todo, dos pés à cabeça. O breve passeio desemboca numa espécie de sala infinita, onde não se enxergam os limites. Horácio se senta no vazio. Se joga no ar e é por ele sustentado.

Senta, filho.

Pai…

Senta.

Onde?

Senta e não discute.

Ao sentar-se e perceber que o ar o sustenta Fábio começa a rir.

Nenhuma daquelas porcarias que você tomava dava um barato celeste como esse, né?

Isso é fantástico!

É espetacular. Mas acostuma.

Pai, me conta como é morar aqui.

Não.

Pai!

Não, não vou falar nada. E eu não moro aqui. Eu vim aqui… Aliás, me deixaram vir aqui depois de muita falação da minha parte. E não foi pra isso. Tenho tempo contado.

Tá.

Isso aqui é tipo uma sala de visitas. Serve só pra isso.

Como assim?

Fábio!!!

Desculpa.

Filho, eu queria te dizer algumas coisas…

Pai, eu te amo tanto…

Eu também. Filho, eu preciso muito de seu auxílio.

Eu? Quem morre é que auxilia quem fica.

Você é que pensa.

Aquele acidente estúpido… O senhor tava fora de mão, na Paulista. O que aconteceu naquele dia?

Desígnios sobre os quais eu não tenho nenhuma influência.

Pai, cê tá falando igualzinho à Tia Belisa.

Presta atenção, Fábio. O seu papel na nossa família é importantíssimo de agora em diante. Você é eixo, o centro de tudo, meu filho.

Eu sou incapaz de gerir minha própria vida, pai…

Não é.

Sou.

Você é mimado. Eu me penitencio por isso, é culpa minha e da Ada. Nós não soubemos passar a você a confiança necessária pra que você se tornasse uma pessoa mais equilibrada. Você também trouxe consigo coisas que já existiam e que pelas quais você tem de passar pra poder superar…

Cê tá falando de reencarnação?

Não.

Mas se eu tenho que passar por algumas coisas…

Eu não sou espírita.

É, eu sei. O senhor é ateu.

Agnóstico.

Mas e aí, como é que fica?

Como é que fica o quê?

O senhor acha que Deus é besteira e chega aqui no céu, sentado no vento, se comunicando comigo que tô vivo e falando de reencarnação? Não é estranho? O senhor não se sente derrotado?

Eu me sinto normal.

Mas se o senhor tá falando comigo, tá vivo, é através da vida eterna. Deus existe!

Quem disse que Deus tem alguma coisa a ver com isso?

Pai, olha isso! O senhor tá flutuando. Eu tô flutuando.

Então você acha que Deus, o Deus Todo Poderoso, tem como meta de sua criação fazer um velho flutuar?

Eu acho que…

Fábio, meu filho. Por Deus, Krishna, Buda, Maomé, cala essa boca. Me deixa falar.

Eles sorriem e Fábio pula no pescoço do pai, o enche de beijos.

Você tá pesado, menino. Engordou. Só come pizza!

Você me vê!

Vejo.

Fala, pai.

As coisas andam difíceis, eu sei. Sei da minha filha querida, do meu filho, sei da sua namorada, de tudo. Sei que não deixei uma situação organizada pra vocês. Fiz o que pude.

Pai, ninguém se queixa nem te culpa.

Sua mãe é uma mulher maravilhosa. O maior amor da minha vida. A Cida depois me deu esses gêmeos incríveis, me ajudou muito com os negócios. Eu fui um homem feliz. Vivi muito. Eu apenas desejo que as coisas que eu deixei desorganizadas se organizem. Pra eu poder seguir.

Como eu posso ajudar?

Esteja atento, meu filho. Muito atento.

A Estela acha que está muito doente.

Não importa isso. Se é muito ou pouco doente. O que importa é que sua irmã está numa enrascada muito grande com esse casamento.

Eu dei um mata leão nele hoje, pai. No banheiro do hospital.

Como assim?

Eu ia bater nele. Imobilizei assim. Na parede. Você não viu?

Não.

Mas você disse que vê a gente…

Vejo mas não sigo como uma novela que eu não posso perder um capítulo. Eu tenho o que fazer aqui.

O quê?

Fábio…

Tá, tá… Eu tenho de estar atento. OK.

Esse casamento dela é a fonte de praticamente tudo o que aflige todos vocês hoje.

Como assim?

Esteja atento. Acompanhe mais seus irmãos.

Mas desde aquele dia no restaurante a gente não se desgrudou mais.

Ainda assim. Acompanhe mais. Por mim. Por Ada.

E a minha filha?

Filho, o que eu posso dizer é isso. Acompanhe seus irmãos muito de perto.

Mas minha filha é algo muito importante pra mim. Tanto quanto eles.

Acompanhe seus irmãos e seus problemas estarão também em vias de se resolver. O foco de tudo é isso. Acompanhe-os de perto.

Tudo bem, pai.

Você jura?

Juro.

Promete?

Quantas vezes for preciso.

Fico feliz. Espera um pouco.

Horácio se concentra e desabafa.

Disse tudo o que foi combinado, fui breve, não falei merda nem extrapolei. Fui um bom menino. Me deixem falar com meu filho mais uns minutinhos, por favor?

Silêncio.

E aí?

Pai, você fala assim com eles?

Não se mete. Posso falar mais um pouco com meu filho?

Surge uma voz aveludada de mulher, muito intensa e muito firme.

Este tempo que está sendo gasto com relatórios poderia estar sendo usado em seu diálogo com seu filho. Continue e quando for o momento de despedida o senhor saberá.

Horácio ri. Fábio atônito.

Temos mais um tempinho.

Pai, Deus é mulher?

Que Deus!

Isso… Essa voz…

Essa é a Cleide.

Cleide?

É. A Cleide.

E ela manda no senhor?

Ela me orienta. Me dá suquinho.

Suco?

É.

Que loucura.

Lembra da casa azul de Estocolmo?

Todos os dias.

Eu também. Fui feliz aquela temporada lá.

Nós vamos pagar a dívida do casarão.

Não tenho a menor dúvida.

Nunca entendi aquilo ficar abandonado…

Valorizar. Não tinha dinheiro pra fazer o que eu queria naquele terreno. Deixei lá.

A gente fez as pazes com a sua namorada.

Fizeram?

Fizemos. Ela negou que estivesse em união estável.

Muito digna a Vanessa.

Muito.

Abriu mão do apartamento.

Ela tinha medo. Achava mal assombrado. Colocou macumbeiros lá dentro pra benzer, defumar, fazer um carnaval lá dentro. Vivia se tremendo toda por ver vultos.

Tá brincando!

Sério. Pergunta pra ela.

Pai, eu tô me esforçando muito. Tá muito duro.

A vida é sempre dura, meu filho. Sempre. Eu tinha esse espírito leve, essa alma brejeira. Eu nunca fui um homem de levar as coisas muito a sério. Eu fui vivendo. As coisas foram acontecendo. As mulheres, os negócios, os filhos… Eu fui sendo quem eu era sem me planejar. Pra mim funcionou. Pra você eu noto que não… Você sofre. Precisa de um norte, de responsabilidade. Eu dou a você toda a responsabilidade agora. Você vai ser o cara.

O cara, eu…

Pare de se diminuir. Você é meu filho. Não é à toa.

Você poderia pedir pra voltar.

A primeira coisa que eu fiz!

E aí?

Riram gostosamente da minha cara e me deram suquinho.

Pai?

Fala.

Qual é o sentido da vida?

O sentido?

É. Qual é o segredo? A meta.

Se eu soubesse não estava aqui com tempo contado pela Cleide e em tratamento. Dizem que é o amor, mas eu amei tanto meus pais e não os encontrei aqui. Eu não sei, meu filho. Eu acho que é o bem. Faça o bem e toque sua vida.

Eu amo tanto você, bonitinho…

Eu também amo você, gatão!

Se abraçaram de um modo como Fábio nunca havia experimentado. Ele e o pai eram um só. Em uma fração de segundo Fábio está em sua cama, suado, abraçado ao travesseiro. Um susto, uma espécie de arrepio. O cheiro do pai, do Atkinsons que ele usou a vida tomando conta do ambiente. Fábio ri e chora ao mesmo tempo, um deslumbramento.

De manhã, Sara atende a porta. Eduardo entra e encontra Sandra dando mingau pra menina.

Sandra…

Oi Eduardo.

Você voltou pra São Paulo sem me consultar.

Eu precisei.

Isso pode complicar muito a minha vida…

Não vai dar um beijo na sua filha?

FIM DO SÉTIMO CAPÍTULO

Memória Velha Sexto Capítulo

O iPhone de Eduardo faz barulho. Chama a atenção de seu dono que está na fila da padaria. Um áudio do WhatsApp vindo de Fábio.

Fábio falando. Eduardo, eu preciso que você preste bem atenção no que eu vou te dizer. A Estela esteve conosco hoje e passou mal, teve uma hemorragia grave. Eu a trouxe para o Hospital Paulistano, estamos aqui eu, Caio e dona Cida. Quarto 209. Por favor, prepare uma maleta com roupas íntimas, uma muda de roupa pra quando ela tiver alta, objetos de uso pessoal, o computador dela, essas coisas básicas. Ela deve passar no mínimo dois dias aqui fazendo exames. Aguardamos você.

A resposta vai rápida.

Estou indo.

Eduardo abandona as compras no balcão e vai correndo pro carro, aflito. Dirige em alta velocidade até sua casa. Monta a maleta, troca de camisa. Bebe água. Sai em disparada para o hospital.

No quarto, Estela está acompanhada por Cida. Na sala de espera estão Caio e Fábio assistindo televisão. Eduardo entra com a maleta e passa por eles sem cumprimentá-los. Entra no quarto e beija a mulher com muita ternura.

O que foi isso?

Ela começou a sangrar pelo nariz, a gengiva também vertia sangue. O Fábio colocou ela no carro e viemos correndo pra cá. – Diz Cida, preocupada. – Ela já fez dois exames, tem mais três marcados pra amanhã. Vai dormir aqui, ficar de observação.

O que eles acham que é?

É leucemia, amor. – garante Estela, resignada.

Quem disse isso?

Não é leucemia, ela está falando isso sem ter noção, Eduardo – rebate Cida.

Eu sei que é mãe.

De onde você tirou isso amor?

Minha filha, não fala isso nem de brincadeira.

Gente, eu sei que é. Eu tive uma amiga de colégio que foi assim, igualzinho. A Mariana, mãe. Lembra dela?

Não é leucemia, Estela!

É. Eu vejo aquela série do FoxLife, a da moça que tem de reconstruir a vida depois de…

Não fala besteira, filha! Você está assustando o seu marido. Eduardo, médico nenhum falou absolutamente nada sobre diagnóstico.

Eu sei que é, mãe! Eu ando cansada, apática. As manchas na coxa. Antes da morte do papai, ainda.

Não diz besteira, amor.

Não é besteira! Eu já vi acontecer com a Mariana, eu já vi acontecer na televisão. Eu tô doente.

Eu trouxe suas coisas, você precisa de algo mais? Quer um livro, uma revista, uma fruta?

Não.

Eu posso comprar comida pra você e sua mãe…

A comida daqui é boa, nós já jantamos.

Eduardo, meu filho. Eu vou aproveitar que você está aqui e vou trocar de lugar com os irmãos dela. Só permitem um acompanhante e um visitante.

Obrigado, dona Cida.

Minha filha, pare de falar essas coisas sem saber. Relaxe um pouco.

Cida beija a filha e sai. Encontra o enteado no corredor.

Cadê o Caio?

Foi fazer um lanche.

Entra no meu lugar, Fábio. Eu vou convencer o Caio a ir comigo pra casa. Não é bom ele dividir o mesmo espaço com o Eduardo numa situação dessas.

Ele não vai querer ir, Cida…

Eu dou meu jeito. Entra.

Ele obedece a madrasta. Beija a irmã na testa.

Tá melhor, Estelinha?

Tô. Amor, eu preciso que amanhã você vá ao banco retirar o dinheiro da aplicação.

Agora é a hora de cuidarmos da sua saúde, Estela.

Eu combinei com o gerente. Amanhã depois do almoço, qualquer horário. Você vai sacar o dinheiro e entregar pro Fábio.

Estela, a gente já falou sobre isso…

Eu fui lá hoje, eu já fiz o resgate, assinei. Basta você assinar e pegar o cheque. Pega o cheque e põe na mão dele. O prazo do leilão tá correndo, nós vamos perder o casarão.

Fábio, encabulado – Estelinha, o teu marido tem razão. Amanhã é dia de mais exames, a gente vai ficar preocupado contigo. Imagina, quem vai ter cabeça de tratar disso enquanto você vai estar aqui sendo revirada do avesso?

Fábio, você quer que eu melhore? Que eu fique bem?

Claro!

Então o Eduardo vai buscar o cheque amanhã sem falta e entregar pra você. Ponto final.

Como você é teimosa, Estela… – Eduardo visivelmente se irrita. – Como você é teimosa!

O telefone de Eduardo toca. Ele vai pro corredor atender.

Alô.

Eduardo?

Quem tá falando?

É Sara.

Dona Sara, eu já não pedi pra vocês não me ligarem? Eu tô cheio de problemas aqui pra resolver, a senhora faz ideia de onde eu estou falando?

Eu sei. Mas acontece que…

Eu estou falando de um hospital onde a minha mulher está internada. Eu não tenho tempo de ficar falando com a senhora. Dinheiro eu acabei de dar, o que é que a senhora…

A Sandra tá aqui em casa com a menina.

Como assim?

Ela chegou hoje cedo de Curitiba. Não deu mais certo lá. Pegou as malas e veio embora.

Isso não podia acontecer…

Ela disse que vai procurar o rapaz lá, o tal do Fábio. Tá cansada de mentira.

Não!

Tô só dizendo o que ouvi dela.

Passa o telefone pra ela.

Ela não está.

Como não está? Passa o telefone.

Saiu!

Saiu onde?

Foi ao shopping com uma prima e a menina.

Que shopping?

Olha, sei lá. Qualquer um aqui perto, Metrô Tatuapé, Aricanduva, não importa.

Fala pra ela não telefonar pro meu celular de jeito nenhum, dona Sara, Pra ela ficar quieta até amanhã que eu vou aí falar com ela.

Eu só estou querendo ajudar, eu não tenho nada a ver com essa história…

Amanhã sem falta. Não deixe ela estragar tudo.

Ele desliga e, ao virar-se pra voltar ao quarto, toma um susto imenso com a visão de Fábio a lhe observar.

O que foi?

Porra, que susto!

Eu tô indo embora.

Tá, vai.

Eu tentei acalmar a Estelinha e…

Pode deixar que da minha mulher cuido eu.

Eu disse pra ela que você não precisa ir ao banco amanhã…

Tira seu cavalinho da chuva se você acha que eu vou colocar minha aplicação bancária naquela casa velha. Não conte com o meu dinheiro pra isso. Sua irmã é muito voluntariosa e eu não tenho como bater de frente com ela vendo o estado em que ela está. Mas eu vou dar meu jeito. Ela vai cair em si e esse dinheiro vai voltar pro banco. Sem ter passado pelo seu bolso de drogado.

Num movimento brusco, Fábio arrasta Eduardo para dentro do banheiro que fica em frente à porta do quarto de Estela. Eduardo não tem tempo de reagir, nem mesmo de gritar. Está com os braços torcidos pra trás quando é pressionado contra a fria parede de pastilhas de vidro. Fábio arfa em suas costas.

Você vai aprender que não se fala assim com ninguém seu caga pau do caralho.

Me solta!

Você acha que eu não sei que você cheirava também, hipócrita? Vacilão!

Me solta que eu vou começar a gritaAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAR! – O grito sai incontido após Fábio apertar ainda mais os braços de Eduardo pra cima, no limite do tolerável pela cartilagem de articulação.

Você é um cagalhão de merda, um bosta, um idiota maconheiro do Mackenzie, que depois começou a cheirar e que inclusive passou seis meses na mesma clínica que eu!

Mentira! Nunca usei nada!

Usou, ficou internado que eu sei! A mãe da minha filha me contou!

Fábio solta os braços de Eduardo e, no mesmo movimento, aplica-lhe uma rasteira que o faz cair mercurial.

Eu nunca abri minha boca em respeito ao imenso amor que a minha irmã sente por você. Nunca me meti na sua briga com o Caio…

Nem tem que se meter! Eu vou chamar a segurança!

Nunca contei nada pro Caio pra não correr o risco dele falar num momento de raiva…

Isso é tudo mentira!

Não é! Eu me envolvi com uma enfermeira da clínica! Sandra, você conhece.

Quem?

Sandra. Você sabe muito bem de quem eu tô falando. Ela ministra as medicações no turno da tarde.

Ela não pode ter dito nada…

Ela disse.

Como?

Ela reconheceu a Estela quando ela foi me visitar junto com meu pai. Ela me disse “eu conheço a sua irmã, ela vinha visitar o namorado”.

E como você sabe que ela está certa? Tem tanta mulher igual a Estela! Ela pode ter se confundido!

A Sandra não se confundiu. Era você.

Você confia na palavra de uma qualquer?

Ela é a mãe da minha filha!

Que filha? Não sei nada de filha…

Ela sabe o seu nome, ela descreveu você com perfeição, um engomadinho, filho de papai, burguesinho ridículo que ao menor sinal de um verdadeiro homem por perto fica assim como você está agora, no chão! Você escuta bem o que eu vou te dizer, vou fazer isso uma vez só. Não se mete no caminho do Caio. Não se mete. E nunca mais abre essa boca imunda pra me chamar de drogado.

Você é!

Você também é!

O telefone de Eduardo toca. Ele se assusta de novo.

Não me força a quebrar sua cara, Eduardo. Se eu me ver obrigado a fazer isso, vai ser de uma maneira que nem uma junta médica te reconstrói de novo. Eu vou acabar com você.

Fábio sai do banheiro. Eduardo vai procurar o telefone no bolso em estado de pavor, trêmulo. Ele para de tocar. Quando finalmente Eduardo confere a tela, a legenda CHAMADA PERDIDA DE SANDRA o coloca em choque.

Alô.

Caio?

Oi Fá. E a Estela?

Tá bem. Eu preciso te contar uma coisa.

Fala.

Eu quase quebrei os dois braços do Eduardo hoje no hospital.

Como assim?

Literalmente. Eu dei um mata leão nele. No banheiro.

HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!

Já em casa, em seu mezzanino, Fábio tenta dormir mas não consegue. As imagens da briga com o cunhado, da hemorragia da irmã, da filha desaparecida e do pai morto se misturam em um balé mórbido, anti-relaxante.

Sente calor, liga o ventilador de teto. Tira a camisa do pijama. Tapa a cabeça com o travasseiro. Tudo incomoda, arde, pinica. Os carros que passam na rua parecem fazer mais barulho que o costume.

O sono vence.

Fábio dorme.

Um sonho nasce.

Uma luz.

Meu filho!

Ele caminha por uma espécie de jardim de inverno até distinguir formas e cores. A luz se intensifica. A visão de Horácio se estabelece plácida e serena.

Pai?

Não vai me dar um abraço?

FIM DO SEXTO CAPÍTULO