Memória Velha Sétimo Capítulo

Fábio abraçou o pai. Uma emoção que não há palavras no vernáculo para descrever de maneira justa. Horácio parecia alguns anos mais jovem, a pele menos rugosa, os olhos mais brilhantes.

Pai, a gente cremou você…

Vocês cremaram meu corpo.

Pai…

Sou eu, olha pra mim direito, Fábio. Olha nos meus olhos.

O senhor tá lindo, pai.

Eu sou bonito.

É, o senhor é bonito.

Não é?

Pai, o que é isso? Aqui é o quê, o céu? O purgatório? Eu morri?

Cala a boca e aproveita. Custou caríssimo pra mim essa visita.

Visita?

Fábio, menos. Quando for a sua vez você vai entender.

Mas, pai…

Fábio, escuta…

Me explica, isso é um sonho? Isso é aquilo… Como que se fala…

Isso é a vida, meu filho. A vida. Ela é eterna, ela é cíclica, é algo muito diferente daquilo que você pensa…

Mas eu achava que…

Fábio, que coisa ansiosa, menino! Chega! Vem cá.

Horácio puxa o filho pelo braço por uma espécie de corredor macio. Como se as coisas tivessem uma textura mais flexível que as que são experimentadas na Terra. Fábio se arrepia o tempo todo, dos pés à cabeça. O breve passeio desemboca numa espécie de sala infinita, onde não se enxergam os limites. Horácio se senta no vazio. Se joga no ar e é por ele sustentado.

Senta, filho.

Pai…

Senta.

Onde?

Senta e não discute.

Ao sentar-se e perceber que o ar o sustenta Fábio começa a rir.

Nenhuma daquelas porcarias que você tomava dava um barato celeste como esse, né?

Isso é fantástico!

É espetacular. Mas acostuma.

Pai, me conta como é morar aqui.

Não.

Pai!

Não, não vou falar nada. E eu não moro aqui. Eu vim aqui… Aliás, me deixaram vir aqui depois de muita falação da minha parte. E não foi pra isso. Tenho tempo contado.

Tá.

Isso aqui é tipo uma sala de visitas. Serve só pra isso.

Como assim?

Fábio!!!

Desculpa.

Filho, eu queria te dizer algumas coisas…

Pai, eu te amo tanto…

Eu também. Filho, eu preciso muito de seu auxílio.

Eu? Quem morre é que auxilia quem fica.

Você é que pensa.

Aquele acidente estúpido… O senhor tava fora de mão, na Paulista. O que aconteceu naquele dia?

Desígnios sobre os quais eu não tenho nenhuma influência.

Pai, cê tá falando igualzinho à Tia Belisa.

Presta atenção, Fábio. O seu papel na nossa família é importantíssimo de agora em diante. Você é eixo, o centro de tudo, meu filho.

Eu sou incapaz de gerir minha própria vida, pai…

Não é.

Sou.

Você é mimado. Eu me penitencio por isso, é culpa minha e da Ada. Nós não soubemos passar a você a confiança necessária pra que você se tornasse uma pessoa mais equilibrada. Você também trouxe consigo coisas que já existiam e que pelas quais você tem de passar pra poder superar…

Cê tá falando de reencarnação?

Não.

Mas se eu tenho que passar por algumas coisas…

Eu não sou espírita.

É, eu sei. O senhor é ateu.

Agnóstico.

Mas e aí, como é que fica?

Como é que fica o quê?

O senhor acha que Deus é besteira e chega aqui no céu, sentado no vento, se comunicando comigo que tô vivo e falando de reencarnação? Não é estranho? O senhor não se sente derrotado?

Eu me sinto normal.

Mas se o senhor tá falando comigo, tá vivo, é através da vida eterna. Deus existe!

Quem disse que Deus tem alguma coisa a ver com isso?

Pai, olha isso! O senhor tá flutuando. Eu tô flutuando.

Então você acha que Deus, o Deus Todo Poderoso, tem como meta de sua criação fazer um velho flutuar?

Eu acho que…

Fábio, meu filho. Por Deus, Krishna, Buda, Maomé, cala essa boca. Me deixa falar.

Eles sorriem e Fábio pula no pescoço do pai, o enche de beijos.

Você tá pesado, menino. Engordou. Só come pizza!

Você me vê!

Vejo.

Fala, pai.

As coisas andam difíceis, eu sei. Sei da minha filha querida, do meu filho, sei da sua namorada, de tudo. Sei que não deixei uma situação organizada pra vocês. Fiz o que pude.

Pai, ninguém se queixa nem te culpa.

Sua mãe é uma mulher maravilhosa. O maior amor da minha vida. A Cida depois me deu esses gêmeos incríveis, me ajudou muito com os negócios. Eu fui um homem feliz. Vivi muito. Eu apenas desejo que as coisas que eu deixei desorganizadas se organizem. Pra eu poder seguir.

Como eu posso ajudar?

Esteja atento, meu filho. Muito atento.

A Estela acha que está muito doente.

Não importa isso. Se é muito ou pouco doente. O que importa é que sua irmã está numa enrascada muito grande com esse casamento.

Eu dei um mata leão nele hoje, pai. No banheiro do hospital.

Como assim?

Eu ia bater nele. Imobilizei assim. Na parede. Você não viu?

Não.

Mas você disse que vê a gente…

Vejo mas não sigo como uma novela que eu não posso perder um capítulo. Eu tenho o que fazer aqui.

O quê?

Fábio…

Tá, tá… Eu tenho de estar atento. OK.

Esse casamento dela é a fonte de praticamente tudo o que aflige todos vocês hoje.

Como assim?

Esteja atento. Acompanhe mais seus irmãos.

Mas desde aquele dia no restaurante a gente não se desgrudou mais.

Ainda assim. Acompanhe mais. Por mim. Por Ada.

E a minha filha?

Filho, o que eu posso dizer é isso. Acompanhe seus irmãos muito de perto.

Mas minha filha é algo muito importante pra mim. Tanto quanto eles.

Acompanhe seus irmãos e seus problemas estarão também em vias de se resolver. O foco de tudo é isso. Acompanhe-os de perto.

Tudo bem, pai.

Você jura?

Juro.

Promete?

Quantas vezes for preciso.

Fico feliz. Espera um pouco.

Horácio se concentra e desabafa.

Disse tudo o que foi combinado, fui breve, não falei merda nem extrapolei. Fui um bom menino. Me deixem falar com meu filho mais uns minutinhos, por favor?

Silêncio.

E aí?

Pai, você fala assim com eles?

Não se mete. Posso falar mais um pouco com meu filho?

Surge uma voz aveludada de mulher, muito intensa e muito firme.

Este tempo que está sendo gasto com relatórios poderia estar sendo usado em seu diálogo com seu filho. Continue e quando for o momento de despedida o senhor saberá.

Horácio ri. Fábio atônito.

Temos mais um tempinho.

Pai, Deus é mulher?

Que Deus!

Isso… Essa voz…

Essa é a Cleide.

Cleide?

É. A Cleide.

E ela manda no senhor?

Ela me orienta. Me dá suquinho.

Suco?

É.

Que loucura.

Lembra da casa azul de Estocolmo?

Todos os dias.

Eu também. Fui feliz aquela temporada lá.

Nós vamos pagar a dívida do casarão.

Não tenho a menor dúvida.

Nunca entendi aquilo ficar abandonado…

Valorizar. Não tinha dinheiro pra fazer o que eu queria naquele terreno. Deixei lá.

A gente fez as pazes com a sua namorada.

Fizeram?

Fizemos. Ela negou que estivesse em união estável.

Muito digna a Vanessa.

Muito.

Abriu mão do apartamento.

Ela tinha medo. Achava mal assombrado. Colocou macumbeiros lá dentro pra benzer, defumar, fazer um carnaval lá dentro. Vivia se tremendo toda por ver vultos.

Tá brincando!

Sério. Pergunta pra ela.

Pai, eu tô me esforçando muito. Tá muito duro.

A vida é sempre dura, meu filho. Sempre. Eu tinha esse espírito leve, essa alma brejeira. Eu nunca fui um homem de levar as coisas muito a sério. Eu fui vivendo. As coisas foram acontecendo. As mulheres, os negócios, os filhos… Eu fui sendo quem eu era sem me planejar. Pra mim funcionou. Pra você eu noto que não… Você sofre. Precisa de um norte, de responsabilidade. Eu dou a você toda a responsabilidade agora. Você vai ser o cara.

O cara, eu…

Pare de se diminuir. Você é meu filho. Não é à toa.

Você poderia pedir pra voltar.

A primeira coisa que eu fiz!

E aí?

Riram gostosamente da minha cara e me deram suquinho.

Pai?

Fala.

Qual é o sentido da vida?

O sentido?

É. Qual é o segredo? A meta.

Se eu soubesse não estava aqui com tempo contado pela Cleide e em tratamento. Dizem que é o amor, mas eu amei tanto meus pais e não os encontrei aqui. Eu não sei, meu filho. Eu acho que é o bem. Faça o bem e toque sua vida.

Eu amo tanto você, bonitinho…

Eu também amo você, gatão!

Se abraçaram de um modo como Fábio nunca havia experimentado. Ele e o pai eram um só. Em uma fração de segundo Fábio está em sua cama, suado, abraçado ao travesseiro. Um susto, uma espécie de arrepio. O cheiro do pai, do Atkinsons que ele usou a vida tomando conta do ambiente. Fábio ri e chora ao mesmo tempo, um deslumbramento.

De manhã, Sara atende a porta. Eduardo entra e encontra Sandra dando mingau pra menina.

Sandra…

Oi Eduardo.

Você voltou pra São Paulo sem me consultar.

Eu precisei.

Isso pode complicar muito a minha vida…

Não vai dar um beijo na sua filha?

FIM DO SÉTIMO CAPÍTULO

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