Memória Velha Sexto Capítulo

O iPhone de Eduardo faz barulho. Chama a atenção de seu dono que está na fila da padaria. Um áudio do WhatsApp vindo de Fábio.

Fábio falando. Eduardo, eu preciso que você preste bem atenção no que eu vou te dizer. A Estela esteve conosco hoje e passou mal, teve uma hemorragia grave. Eu a trouxe para o Hospital Paulistano, estamos aqui eu, Caio e dona Cida. Quarto 209. Por favor, prepare uma maleta com roupas íntimas, uma muda de roupa pra quando ela tiver alta, objetos de uso pessoal, o computador dela, essas coisas básicas. Ela deve passar no mínimo dois dias aqui fazendo exames. Aguardamos você.

A resposta vai rápida.

Estou indo.

Eduardo abandona as compras no balcão e vai correndo pro carro, aflito. Dirige em alta velocidade até sua casa. Monta a maleta, troca de camisa. Bebe água. Sai em disparada para o hospital.

No quarto, Estela está acompanhada por Cida. Na sala de espera estão Caio e Fábio assistindo televisão. Eduardo entra com a maleta e passa por eles sem cumprimentá-los. Entra no quarto e beija a mulher com muita ternura.

O que foi isso?

Ela começou a sangrar pelo nariz, a gengiva também vertia sangue. O Fábio colocou ela no carro e viemos correndo pra cá. – Diz Cida, preocupada. – Ela já fez dois exames, tem mais três marcados pra amanhã. Vai dormir aqui, ficar de observação.

O que eles acham que é?

É leucemia, amor. – garante Estela, resignada.

Quem disse isso?

Não é leucemia, ela está falando isso sem ter noção, Eduardo – rebate Cida.

Eu sei que é mãe.

De onde você tirou isso amor?

Minha filha, não fala isso nem de brincadeira.

Gente, eu sei que é. Eu tive uma amiga de colégio que foi assim, igualzinho. A Mariana, mãe. Lembra dela?

Não é leucemia, Estela!

É. Eu vejo aquela série do FoxLife, a da moça que tem de reconstruir a vida depois de…

Não fala besteira, filha! Você está assustando o seu marido. Eduardo, médico nenhum falou absolutamente nada sobre diagnóstico.

Eu sei que é, mãe! Eu ando cansada, apática. As manchas na coxa. Antes da morte do papai, ainda.

Não diz besteira, amor.

Não é besteira! Eu já vi acontecer com a Mariana, eu já vi acontecer na televisão. Eu tô doente.

Eu trouxe suas coisas, você precisa de algo mais? Quer um livro, uma revista, uma fruta?

Não.

Eu posso comprar comida pra você e sua mãe…

A comida daqui é boa, nós já jantamos.

Eduardo, meu filho. Eu vou aproveitar que você está aqui e vou trocar de lugar com os irmãos dela. Só permitem um acompanhante e um visitante.

Obrigado, dona Cida.

Minha filha, pare de falar essas coisas sem saber. Relaxe um pouco.

Cida beija a filha e sai. Encontra o enteado no corredor.

Cadê o Caio?

Foi fazer um lanche.

Entra no meu lugar, Fábio. Eu vou convencer o Caio a ir comigo pra casa. Não é bom ele dividir o mesmo espaço com o Eduardo numa situação dessas.

Ele não vai querer ir, Cida…

Eu dou meu jeito. Entra.

Ele obedece a madrasta. Beija a irmã na testa.

Tá melhor, Estelinha?

Tô. Amor, eu preciso que amanhã você vá ao banco retirar o dinheiro da aplicação.

Agora é a hora de cuidarmos da sua saúde, Estela.

Eu combinei com o gerente. Amanhã depois do almoço, qualquer horário. Você vai sacar o dinheiro e entregar pro Fábio.

Estela, a gente já falou sobre isso…

Eu fui lá hoje, eu já fiz o resgate, assinei. Basta você assinar e pegar o cheque. Pega o cheque e põe na mão dele. O prazo do leilão tá correndo, nós vamos perder o casarão.

Fábio, encabulado – Estelinha, o teu marido tem razão. Amanhã é dia de mais exames, a gente vai ficar preocupado contigo. Imagina, quem vai ter cabeça de tratar disso enquanto você vai estar aqui sendo revirada do avesso?

Fábio, você quer que eu melhore? Que eu fique bem?

Claro!

Então o Eduardo vai buscar o cheque amanhã sem falta e entregar pra você. Ponto final.

Como você é teimosa, Estela… – Eduardo visivelmente se irrita. – Como você é teimosa!

O telefone de Eduardo toca. Ele vai pro corredor atender.

Alô.

Eduardo?

Quem tá falando?

É Sara.

Dona Sara, eu já não pedi pra vocês não me ligarem? Eu tô cheio de problemas aqui pra resolver, a senhora faz ideia de onde eu estou falando?

Eu sei. Mas acontece que…

Eu estou falando de um hospital onde a minha mulher está internada. Eu não tenho tempo de ficar falando com a senhora. Dinheiro eu acabei de dar, o que é que a senhora…

A Sandra tá aqui em casa com a menina.

Como assim?

Ela chegou hoje cedo de Curitiba. Não deu mais certo lá. Pegou as malas e veio embora.

Isso não podia acontecer…

Ela disse que vai procurar o rapaz lá, o tal do Fábio. Tá cansada de mentira.

Não!

Tô só dizendo o que ouvi dela.

Passa o telefone pra ela.

Ela não está.

Como não está? Passa o telefone.

Saiu!

Saiu onde?

Foi ao shopping com uma prima e a menina.

Que shopping?

Olha, sei lá. Qualquer um aqui perto, Metrô Tatuapé, Aricanduva, não importa.

Fala pra ela não telefonar pro meu celular de jeito nenhum, dona Sara, Pra ela ficar quieta até amanhã que eu vou aí falar com ela.

Eu só estou querendo ajudar, eu não tenho nada a ver com essa história…

Amanhã sem falta. Não deixe ela estragar tudo.

Ele desliga e, ao virar-se pra voltar ao quarto, toma um susto imenso com a visão de Fábio a lhe observar.

O que foi?

Porra, que susto!

Eu tô indo embora.

Tá, vai.

Eu tentei acalmar a Estelinha e…

Pode deixar que da minha mulher cuido eu.

Eu disse pra ela que você não precisa ir ao banco amanhã…

Tira seu cavalinho da chuva se você acha que eu vou colocar minha aplicação bancária naquela casa velha. Não conte com o meu dinheiro pra isso. Sua irmã é muito voluntariosa e eu não tenho como bater de frente com ela vendo o estado em que ela está. Mas eu vou dar meu jeito. Ela vai cair em si e esse dinheiro vai voltar pro banco. Sem ter passado pelo seu bolso de drogado.

Num movimento brusco, Fábio arrasta Eduardo para dentro do banheiro que fica em frente à porta do quarto de Estela. Eduardo não tem tempo de reagir, nem mesmo de gritar. Está com os braços torcidos pra trás quando é pressionado contra a fria parede de pastilhas de vidro. Fábio arfa em suas costas.

Você vai aprender que não se fala assim com ninguém seu caga pau do caralho.

Me solta!

Você acha que eu não sei que você cheirava também, hipócrita? Vacilão!

Me solta que eu vou começar a gritaAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAR! – O grito sai incontido após Fábio apertar ainda mais os braços de Eduardo pra cima, no limite do tolerável pela cartilagem de articulação.

Você é um cagalhão de merda, um bosta, um idiota maconheiro do Mackenzie, que depois começou a cheirar e que inclusive passou seis meses na mesma clínica que eu!

Mentira! Nunca usei nada!

Usou, ficou internado que eu sei! A mãe da minha filha me contou!

Fábio solta os braços de Eduardo e, no mesmo movimento, aplica-lhe uma rasteira que o faz cair mercurial.

Eu nunca abri minha boca em respeito ao imenso amor que a minha irmã sente por você. Nunca me meti na sua briga com o Caio…

Nem tem que se meter! Eu vou chamar a segurança!

Nunca contei nada pro Caio pra não correr o risco dele falar num momento de raiva…

Isso é tudo mentira!

Não é! Eu me envolvi com uma enfermeira da clínica! Sandra, você conhece.

Quem?

Sandra. Você sabe muito bem de quem eu tô falando. Ela ministra as medicações no turno da tarde.

Ela não pode ter dito nada…

Ela disse.

Como?

Ela reconheceu a Estela quando ela foi me visitar junto com meu pai. Ela me disse “eu conheço a sua irmã, ela vinha visitar o namorado”.

E como você sabe que ela está certa? Tem tanta mulher igual a Estela! Ela pode ter se confundido!

A Sandra não se confundiu. Era você.

Você confia na palavra de uma qualquer?

Ela é a mãe da minha filha!

Que filha? Não sei nada de filha…

Ela sabe o seu nome, ela descreveu você com perfeição, um engomadinho, filho de papai, burguesinho ridículo que ao menor sinal de um verdadeiro homem por perto fica assim como você está agora, no chão! Você escuta bem o que eu vou te dizer, vou fazer isso uma vez só. Não se mete no caminho do Caio. Não se mete. E nunca mais abre essa boca imunda pra me chamar de drogado.

Você é!

Você também é!

O telefone de Eduardo toca. Ele se assusta de novo.

Não me força a quebrar sua cara, Eduardo. Se eu me ver obrigado a fazer isso, vai ser de uma maneira que nem uma junta médica te reconstrói de novo. Eu vou acabar com você.

Fábio sai do banheiro. Eduardo vai procurar o telefone no bolso em estado de pavor, trêmulo. Ele para de tocar. Quando finalmente Eduardo confere a tela, a legenda CHAMADA PERDIDA DE SANDRA o coloca em choque.

Alô.

Caio?

Oi Fá. E a Estela?

Tá bem. Eu preciso te contar uma coisa.

Fala.

Eu quase quebrei os dois braços do Eduardo hoje no hospital.

Como assim?

Literalmente. Eu dei um mata leão nele. No banheiro.

HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!

Já em casa, em seu mezzanino, Fábio tenta dormir mas não consegue. As imagens da briga com o cunhado, da hemorragia da irmã, da filha desaparecida e do pai morto se misturam em um balé mórbido, anti-relaxante.

Sente calor, liga o ventilador de teto. Tira a camisa do pijama. Tapa a cabeça com o travasseiro. Tudo incomoda, arde, pinica. Os carros que passam na rua parecem fazer mais barulho que o costume.

O sono vence.

Fábio dorme.

Um sonho nasce.

Uma luz.

Meu filho!

Ele caminha por uma espécie de jardim de inverno até distinguir formas e cores. A luz se intensifica. A visão de Horácio se estabelece plácida e serena.

Pai?

Não vai me dar um abraço?

FIM DO SEXTO CAPÍTULO

2 Comments

  1. Muito bom esse embate no banheiro! Essa história está cada vez mais bacana e envolvente. Esse tipo de gente (Eduardo), covarde e hipócrita, tem aos montes por aí, irrita bastante. O perfil de mocinho do Fábio, com todos seus conflitos e o passado turbulento, é muito interessante!

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